Num evento que marca a primeiro reação de empresários diante do desmanche da Petrobras e do setor industrial promovido pelo governo Michel Temer, nesta quinta-feira irá ocorrer uma reunião no Anexo IV da Câmara dos Deputados, em Brasília. Estarão presentes deputados ligados a Frente Parlamentar em Defesa da Engenharia, Infraestrutura e Desenvolvimento Nacional e dirigentes de entidades representativas da Engenharia e da Indústria. O assunto é a defesa da indústria, em particular da política de conteúdo local mínimo, uma proposta que permitiu a recuperação da Petrobras durante os governos Lula e Dilma, e que esteve por trás da criação do parque industrial de São Paulo durante o governo de Juscelino Kubitscheck, na década de 1950. Um dos articuladores do encontro, Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia, falou ao 247 sobre o significado político do evento. “A indústria, mesmo aqueles setores que apoiaram o impeachment, despertou para a gravidade do desmonte que está ocorrendo no país e começa a ir atrás do prejuízo” afirma Celestino. “Estão querendo trocar um modelo bem sucedido, inspirado pela Noruega, por um desastre econômico e social, cujo símbolo entre estudiosos é a Nigéria.”
BRASIL 247 — Por que tantos setores da indústria resolveram reagir à política econômica do governo Temer-Meirelles e defender uma política de conteúdo local mínimo?
PEDRO CELESTINO — O desconforto da indústria com a política econômica não é recente. Juros altos e câmbio apreciado têm, ao longo do tempo, efeito devastador sobre as cadeias produtivas. Aqui não houve desindustrialização no sentido clássico porque a indústria, mantendo a instalação fabril, passou a importar componentes que antes ela mesma produzia. De 2015 para cá aplicou-se uma política de exclusivo interesse do capital financeiro, que veio a se acentuar com a posse de Michel Temer, cuja visão é absolutamente descompromissada com o interesse nacional. Haja vista o que ocorre com a Petrobrás, submetida a um autêntico desmonte, para que passe a ser produtora, por algum tempo, de petróleo bruto, já que abriu mão até de explorar a maior reserva descoberta no planeta nos últimos 30 anos, a do Pré Sal. Desfaz-se, sem transparência, a toque de caixa, de ativos valiosos, comprometendo irreversivelmente seu futuro como empresa integrada de petróleo, como as grandes congêneres mundiais. São 60 anos de história irresponsavelmente destruídos. A indústria de óleo e gás aqui instalada despertou para a gravidade do desmonte na discussão, em curso, da política de conteúdo local mínimo, que as petroleiras estrangeiras, desta vez com decidido apoio da Petrobras, querem revogar.
247 — Por que tantos estudiosos falam que o governo Temer está trocando o modelo da Noruega pelo da Nigéria?
CELESTINO — O bem sucedido esforço de recuperação da Petrobras na ultima década e meia tinha como base a demanda de projetos, máquinas e equipamentos necessários à exploração do pré-sal. Por essa razão, a Noruega serviu de modelo e como exemplo. Ali, a indústria do petróleo funcionou para alavancar o desenvolvimento, arrancando o país de uma posição atrasada entre vizinhos europeus para se transformar em uma nação próspera do ponto de vista da economia e equilibrada como sociedade, que hoje possui um dos mais altos Índices de Desenvolvimento Humano do planeta. Destruída a Petrobrás, as empresas estrangeiras se apossarão do nosso petróleo, sem compromisso de prestar qualquer contrapartida em termos de transferência de tecnologias, geração de empregos — a não ser os de baixa ou nenhuma qualificação, que não interessam aos trabalhadores de seus países — e pagamento de impostos. É o que ocorre na Nigéria.
247 — O que ocorre na Nigéria?
CELESTINO — Embora este país esteja entre os maiores produtores de petróleo do mundo, 70% da sua população vive abaixo da linha de pobreza e a taxa de desemprego é superior a 20%. Este país é um barril de pólvora. É o que acontecerá conosco, se a Petrobrás deixar de cumprir o seu papel histórico, o de âncora do nosso desenvolvimento industrial.
247 — Dá para explicar a importância desta “âncora”?
CELESTINO — É preciso entender que a superação do atraso econômico de um país não é um processo inevitável, uma felicidade garantida que está ao alcance de todos, em qualquer época. É necessário que, em determinados momentos, sejam tomadas medidas concretas que podem estimular — ou atrasar — estes avanços. As empresas que podem concentrar essas decisões são “âncoras” e aqui no Brasil a principal delas é a Petrobrás. Por que? Porque estamos falando de uma empresa responsável pela formação de cadeia de mais de 5000 fornecedores, nacionais e estrangeiros, com uma capacidade de intervenção sobre o conjunto da economia, com efeitos reconhecidos sobre a qualidade de vida da sociedade, fruto da criação de centenas de milhares de empregos. Essa indústria trava agora batalha decisiva para a sua sobrevivência, pois é simplesmente impossível competir com produtos importados com absoluta isenção fiscal, a do Repetro, o maior programa de renúncia fiscal da nossa história, vigente há 20 anos e que se quer prorrogar, sob a alegação de facilitar vultosos investimentos estrangeiros.
247 — Qual o balanço que podemos fazer da política de conteúdo local mínimo, seja do ponto de vista da indústria nacional e da criação de empregos?
CELESTINO — Desde a década de 1950, em particular a partir do governo Juscelino, as políticas de conteúdo local mínimo, aliadas a taxas de juros diferenciadas para investimentos, possibilitaram a rápida industrialização do Brasil. Essa foi a grande mudança ocorrida em nosso país, que permitiu a construção de um parque industrial respeitável pelo tamanho e pela relativa sofisticação tecnológica, eliminando aquela visão de que o Brasil estava condenado a ser uma grande nação agrícola e atrasada. Sem o BNDE e sem o GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística), que estabeleceu metas de progressiva nacionalização de partes e componentes de veículos automotores, São Paulo não teria se transformado na nossa locomotiva industrial. Mesmo o desenvolvimento mais recente do agronegócio, que não tem relação com o latifúndio retrógrado do passado, não teria sido possível sem aquele parque industrial. Também não podemos deixar de lembrar um ponto importante, reconhecido em artigo recente de José Velloso, presidente da Abimaq (Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos) onde escreveu: “Desde o primeiro leilão de blocos exploratórios, em 1999, as exigências de conteúdo local têm sido empregadas como ferramenta de desenvolvimento nacional conduzida com sucesso pela Petrobras. Àquela época a Petrobras adquiria mais de 65% de suas demandas de bens no Brasil. Portanto a Política de Conteúdo Local não nasceu no governo anterior e sim no Governo de FHC.”
247 — A curto prazo, a exigência de conteúdo local pode implicar em custos maiores, que acabam prejudicando o consumidor?
CELESTINO — É uma visão simplista, que conduz a erros graves, a partir da noção de de que produzir aqui é mais caro para o consumidor. Sem produção local não há emprego, e sem emprego não há como sustentar uma população de mais de 200 milhões de pessoas — e tudo se torna insuportavelmente caro. Se não valorizarmos o nosso mercado interno, um dos maiores do mundo, teremos como resultado a queda na renda, empobrecimento e mesmo a miséria. Ninguém discute mais, hoje, o fracasso, do ponto de vista da maioria da população, dos acordos de livre comércio. Frutos de uma globalização sem limites, estes acordos resultaram na desindustrialização e no empobrecimento. Ninguém pode explicar a vitória de Donald Trump em regiões operárias dos Estados Unidos, que tradicionalmente votavam nos candidatos do Partido Democrata, sem compreender que milhões de eleitores expressaram a indignação contra a exportação de empregos que foram para a China e outros países onde os salários são mais baixos. Este foi o fator que decidiu a eleição. O discurso de Trump sobre economia e mesmo determinadas medidas práticas, como a retirada do Tratado do Pacífico, procuram dar uma resposta a isso. Enquanto isso aqui, o governo Temer está na contramão do de Trump, abrindo indiscriminadamente a nossa economia à dominação estrangeira.
247 — Mesmo setores do empresariado que se beneficiaram — legitimamente — de uma política de conteúdo local na Petrobrás apoiaram o impeachment da presidente Dilma. Hoje, criticam o governo que, há menos de um ano, ajudaram a instalar. Como entender isso?
CELESTINO — O empresariado apoiou o impeachment sem ter uma noção clara do que iria ocorrer. Embarcou na ilusão de que bastava afastar a presidente para o país voltar a crescer e se desenvolver. Agora paga o preço da aventura. Já percebeu que, a seguir neste caminho aberto de forma radical e sem freios a integração do Brasil no mercado global será vantajosa apenas para produtores de grãos, carne e minérios, sem falar no setor financeiro. Mas não haverá lugar para a indústria aqui instalada, nacional ou estrangeira. Ressalte-se que as multinacionais que vêm para o Brasil, têm como foco atender ao nosso mercado interno. Não fazem daqui plataforma de exportação, como ocorre em outros lugares. Comportam-se, assim, como se nacionais fossem. Em contradição com isso, a política econômica do governo Temer-Meirelles possui inúmeros defeitos mas não pode ser acusada de incoerente. A ambição de destruir a indústria se faz com método e persistência. Assim, ao mesmo tempo em que o Banco Central reduz a Selic, decide-se elevar a Taxa de Juros do Longo Prazo, uma medida que tem um efeito óbvio e direto: dificultar as condições de financiamento da indústria pelo BNDES, o que ajuda a entender a previsão de mais um milhão de postos de trabalho eliminados ao longo deste ano.
247 — Por que era tão difícil perceber que, do ponto de vista dos interesses da indústria, a opção por Temer-Meirelles seria a tragédia que está se revelando?
CELESTINO — É preciso entender que a indústria entrou a reboque na articulação contra o governo Dilma. Basta ver as bancadas que apoiam o governo no Congresso, com uma audácia entreguista como nunca se viu em nossa história, para entender quem liderou o impeachment e manda no Estado brasileiro depois disso. Foram as bancadas do agronegócio, interessadas unicamente na exportação. Foram evangélicos, que funcionam como correia de transmissão de grandes igrejas norte-americanas. Foi o grande capital financeiro. O novo governo é dominado por essas forças, que não têm compromisso com o interesse nacional. Com efeito, ao agronegócio interessa apenas bom acesso aos portos e renúncia fiscal, pouco se importando com o mercado interno e a democracia. Quanto aos evangélicos, concentram-se em pautas reacionárias e manifestam absoluta submissão a interesses externos; estão a serviço do desmonte do Estado Nação. E o capital financeiro, desde sempre é a grande sanguessuga da nossa economia.
247 — Por que o governo Dilma não conseguiu apoio da indústria?
CELESTINO — Dilma nunca dialogou com a sociedade, nem mesmo quando tomou medidas corretas, tais como a redução da taxa de juros e o conseqüente alívio da carga fiscal. A última tentativa de aproximação da indústria com o governo Dilma, quando a crise já se encontrava em um nível profundo e sua popularidade era inferior a 10% se deu em 3 de dezembro de 2015, quando o Eduardo Cunha já havia anunciado a decisão de aceitar a denúncia que levou ao impeachment. Naquela ocasião um conjunto importante de entidades do setor industrial assinou um documento que propunha uma mudança na orientação econômica. Entre outras coisas, dizia que não era possível “aceitar passivamente as projeções de um 2016 perdido” e propunha construir “a mais rápida transição para a retomada do crescimento e desenvolvimento econômico e social.” Além de reunir as mais importantes centrais sindicais de trabalhadores, o documento trazia a assinatura de associações comerciais, da Confederação Nacional da Indústria e diversas entidades industriais. Depois de aprovado, fomos a Brasília para uma reunião com Dilma. Nenhum eco! O governo já estava paralisado.
247 — Como explicar, aqui, o impeachment de Dilma?
CELESTINO — No regime presidencialista, quem dá as cartas é o presidente da República, que é o centro do poder de Estado. A presidente Dilma caiu quando deixou de ser o centro de poder, que se deslocou para o Congresso, que tinha disposição e capacidade para fazer isso. O empresariado, como quase toda a sociedade, queria uma solução que superasse a paralisia do Executivo e possibilitasse o funcionamento normal da economia. Iludiu-se. Agora começa a correr atrás do prejuízo.
Via Brasil 247