Tragédia, uma palavra forte. Nos últimos anos, ela vem carregada de lama, contamina rios e destrói vidas. Num piscar de olhos viajamos no tempo e nos deparamos com o rastro de destruição promovido pela Vale em Brumadinho e Mariana, por exemplo. Algo recente. Devastador. Mas a vida segue e deixa questionamentos, como o de tentar entender a razão dessas tragédias se repetirem ao longo dos anos.
Araucária, 16 de julho de 2000, data da maior tragédia ambiental da Petrobrás na região sul do Brasil. Um vazamento de 4 milhões de litros de óleo da Repar (1,3 milhão chegou ao rio Barigui e Iguaçu). A Petrobrás sempre se defendeu alegando e punindo alguns trabalhadores, algo bastante questionado ao longo desse tempo. Mas a pergunta que não quer calar é a seguinte: depois 19 anos, será que as coisas mudaram?
Conta a história que os esforços coletivos para conter os vazamentos fizeram a diferença. Luta pouco reconhecida pela empresa. Mas foi graças ao comprometimento dos trabalhadores que uma tragédia ainda maior foi evitada. Mesmo assim, no final das contas, o maior peso foi depositado nas costas dos petroleiros e, como de costume, os gestores saíram de fininho.
Nessas horas, é como se o nome de um dos livros de Charles Bukowski viesse à tona: “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”. Completamos: e tudo de errado que acontecer no navio é culpa dos marinheiros.
Por isso é bom que o petroleiro fique ligado. Como sempre, ele pode pagar a conta. Principalmente porque as incertezas de 2000 se repetem em 2019. As semelhanças voltaram, o neoliberalismo, ou melhor, o ultraliberismo, voltou; e ele traz consigo o desmonte de grandes empresas estatais.
Diante desse cenário, é óbvio que a Petrobrás seria um dos principais alvos dessa política que prioriza monopólios privados em detrimento do monopólio estatal (e constitucional). No Paraná, a Repar e a Fafen (ambas em Araucária) foram colocadas à venda como resultado de uma política “ustraliberal”, com baixos efetivos, cortes nos investimentos, autoritarismo e terceirização desenfreada.
Pode-se dizer que para outra tragédia acontecer basta um empurrão. Sabe àquela história: “estávamos à beira do precipício e demos um passo à frente?”. Então, essa é lógica atual: dar um passo rumo ao conhecido jogo das privatizações irrestritas, com contratos entreguistas, que representa riscos aos petroleiros e a sociedade.
“O Sindicato tem alertado e denunciado todo o descaso com a segurança dos trabalhadores. Não estão investindo em manutenção, reposição de peças e equipamentos, contratação de mão-de-obra para repor o efetivo, na ambiência e na valorização dos seus funcionários, o que acontece atualmente é justamente o contrário. É a preparação para as privatizações, assim como na década de 90. Os resultados todos nós sabemos”, comentou Thiago Olivetti, Secretário de Organização e Relações Sindicais do SindipetroPReSC.
Relato
Hélio Seidel era presidente do Sindicato na época do vazamento e fez um relato detalhado do caso.
“Era um domingo e eu estava em casa com meus familiares quando recebi um telefonema do gerente geral da refinaria. Logo em seguida liguei para o Ferreira e nós fomos para a refinaria. Chegando lá, vimos marcas de óleo e pegadas por todo lado. No dia seguinte, a refinaria montou um esquema de guerra, parecia um quartel. Tinha campo para três ou quatro helicópteros que ficavam subindo e descendo sem parar”.
Seidel lembrou as imprudências da empresa em relação à admissão de pessoal: “a contratação de trabalhadores era feita sem critérios. Não havia exame admissional, simplesmente pegavam o trabalhador, davam uma canequinha e mandavam catar óleo lá no mato. Esse foi basicamente o processo. Outra situação que pegamos foi que a maioria dos trabalhadores era demitida ao sétimo dia para não precisar registrar. Havia um precedente na legislação que permitia isso. Depois contratavam uma nova leva de trabalhadores”.
Juracir Francisco da Silva é uma das vítimas do vazamento de 2000. Após trabalhar por nove dias sem proteção adequada, desenvolveu uma série de doenças e chegou a ficar paraplégico.
“Se não fossem os companheiros do Sindipetro, talvez não seria só o Marconedes (trabalhador já falecido em função de doenças desenvolvidas pelo contato com o petróleo), o Juracir também não estaria aqui. É difícil falar. Só quem sabe é quem passou e quem acompanhou. Eu devo muito a todos vocês”.
Comissão
Para aprofundar as investigações sobre a tragédia da Repar, em Araucária, o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Paraná (CREA-PR), elaborou, em 2002, um “Relatório da Comissão Mista Nomeada para Analisar o Acidente na Petrobrás/Repar Ocorrido em 16/07/2000”.
Dentre os principais pontos, destaca-se a discordância dos órgãos técnicos em relação as punições aplicadas pela empresa aos petroleiros: “recomenda-se que a Petrobrás anule todas as punições aplicadas ao quadro funcional em decorrência do desastre ambiental”.
Como sempre, fazendo alusão ao nome do livro de Bukowski, o capitão botou a culpa no marinheiro.
Curiosidade
Já ouviu falar do São Francisco da Repar? Nos arquivos do Sindipetro, mais precisamente no “Almanaque Memória dos Trabalhadores Petrobrás”, o trabalhador Odilon Sottomaior Macedo, coordenador da limpeza dos pontos de poluição, nos conta essa história:
“O rio Iguaçu estava seco e suas margens totalmente poluídas. Cheias de lixo, garrafas plásticas espalhadas por tudo que é canto. Todo tipo de lixo veio para as barreiras de coletar óleo e a gente começou a coletar lixo ao invés de óleo. Numa ocasião, quando eu voltava da primeira barreira pra segunda, percebi na barranca um operário sentado com óculos escuros, capacete e capa, paradinho ali. Subi a barranca e fui ver tal pessoa. Tirei o capacete e vi que era uma estátua. Era de madeira, tinha um metro e trinta, mais ou menos”.
A estátua era de São Francisco de Assis. O mais interessante é que São Francisco foi canonizado no dia 16 de julho, mesmo dia do acidente. “E o Petróleo veio de São Francisco do Sul. A gente começa a fazer umas ligações… São Francisco apareceu lá nos dando uma lição: ‘Cuidem do rio’”.
São Francisco de Assis é reconhecido como protetor dos animais, do meio ambiente e da ecologia.